domingo, 5 de setembro de 2010

1 – A noite (e o que se lhe seguiu)

Posso dizer que tudo, ou quase tudo, de relevante na minha vida se passou à noite. Nasci à noite e à noite perecerei, certamente. Que outra previsão poderia fazer então em relação a alguém que vive à noite e para a noite? Mas o que vos vou contar não é sobre a noite, ou pelo menos não começa com ela.

A vida continuava, moribunda segundo eu, de ressaca certamente, diriam outros. Todas as manhãs eram assim para mim, a cabeça a estalar e a boca seca, incapaz de aguentar o ritmo de vida que impus. Mas o ânimo era outro. As mãos deslizavam pelo volante levemente. Porquê? A explicação aproximava-se a cada quilómetro que ultrapassava.

Ela tinha-me dito, um segredo ao ouvido, onde trabalhava. Talvez me esperasse ver lá no dia seguinte. Segui o meu instinto, um sexto sentido de que tanto falam. Vos digo que não costumo fazer algo do género, mas aquela voz conquistaria qualquer um, mesmo qualquer um ou qualquer uma entre os tantos corações solitários que vagueiam nos bares.

Parei à frente do restaurante onde ela servia à mesa, aproveitando a folga inesperada que a crise dá a tantos. A minha boca amarga por outras razões, porém.

Quero esclarecer algo, que ainda não esclareci por escrever ao sabor da pena (figurativa): ela é o amor da minha vida. Não queria dizer isto assim, afinal é razão de espanto até para mim. Ninguém espera uma paixão tão forte como resultado de um encontro no bar, consumado por um único beijo. Tão inesperado que pensei sentir muitos olhares pousados sobre nós. Julgo agora não ser produto da minha imaginação.

Mas continuemos, porque tal conclusão não nasce instantaneamente: é algo inocente, mas não totalmente irreflectido ou imaturado (se me permitem inventar), ainda que imaturo. Despontou realmente quando o sangue que sujava os azulejos do restaurante sujou a minha boca, e as lágrimas lavaram a minha cara.

O que aconteceu? É aqui que parece começar o mistério, ou é aqui que começa a surgir realmente.

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Mas será o único mistério? Talvez mais questões surgirão entretanto, se não surgiram já nas vossas mentes.

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