sexta-feira, 13 de junho de 2008

Memórias (2)

Desatei a correr ao longo da rua, virando depois para outra rua, e outra após essa e assim sucessivamente. Eram todas iguais, num bairro sempre igual, aliás, numa cidade muito parecida em toda a sua extensão e depressa me perdi. Talvez quisesse mesmo perder-me, esquecer-me. Apenas acordar num dia completamente novo, no qual o meu crime não perpetuasse. Mas isso era completamente impossível, e não podia voltar atrás.
Parei finalmente, completamente exausto da corrida. Estava numa rua delgada, pisando o alcatrão irregular, ladeado de altos prédios, velhos mas ainda imunes ao abandono que aquela cidade sofria, produto da crescente insegurança e de uma onda de crimes sem fim. Não havia ninguém naquela rua além de mim, mas não me sentia seguro. Caminhei, hesitante, em passos inseguros, pela rua adentro.
De repente, sem que nada o previsse, saíram da escuridão vultos igualmente negros. Mais pareciam um prolongamento da própria escuridão onde se encontravam escondidos e não seres independentes e de vontade própria. Eram cinco pessoas, praticamente da mesma altura e largura, eram altos e fortes e foram essas as únicas coisas em que eu pude reparar, pois vestiam os cinco longos mantos negros que cobriam todo o corpo, inclusive a cabeça, com o auxílio, claro, de um capuz da mesma cor. Formaram um círculo à minha volta e apertaram-no de modo a não me deixarem escapar. Tal coisa era inútil, pois eu não ofereceria resistência, estava demasiado desanimado com tudo o que acontecera na minha vida, e, por isso, já não estava muito preocupado com o que me fariam aqueles desconhecidos. A partir daí apenas me lembro de uma dor aguda na nuca, provocada provavelmente por uma pancada para me atordoar. Voltei a acordar numa cela, sem saber mais nada.
Não posso dizer que não voltei a ver nenhum dos homens que me atacou ou, pelo menos, por estar impedido de os distinguir por causa do manto negro, algum dos seus cúmplices. Davam-me pão e água, todos os dias, e nunca lhes perguntava nada sobre o meu destino, pois sabia que nada iriam responder. Uma vez, um deles entregou-me a comida e quando ia a virar as costas, reuni coragem dentro de mim e perguntei-lhe o mais calmamente possível:
– Quantos dias passaram desde que me prenderam?
Só naquele momento é que percebi há quanto tempo eu não falava. A voz saiu-me rouca e pronunciei as palavras com pouca clareza. A minha voz tremia, e isso fez-me perceber que coragem era algo que me faltava.
Não lhe vi o rosto mas a voz demonstrava uma certa leveza, até um pouco de escárnio:
– Estás aqui há três dias. Mas não te preocupes. Não falta muito para saíres daqui. – e falou, ainda, aumentando o escárnio na sua voz roufenha –Para um sítio muito pior, claro.
E, lançando uma risada, saiu da cela.
É óbvio que, com o tempo que tive naquela cela, tive tempo para pensar no que me aconteceria. Seria um grupo de justiceiros? Era provável que, numa cidade tão afectada pela criminalidade, houvesse quem se preocupasse com a justiça. Se me confrontassem com o meu crime, acho que concordaria com qualquer uma das penas que me impusessem, até a morte. Mas esta hipótese era improvável. Era sim, provável, que fossem criminosos. As intenções deles? Desconhecia-as completamente.
No quinto dia vieram-me buscar. Sabia que era o quinto dia porque, a partir do dia em que falei com o <>, passei a estar mais atento e não me deixar levar pela melancolia. E tal como o dia, vieram cinco homens, envergando o mesmo traje dos homens que me enclausuraram. Conduziram-me ao longo de um corredor, que ligava a minha cela ao exterior, e que possuía paredes de cimento, tal como a cela. No fim desse corredor, trespassei a porta de saída, sem saber o que me esperava.
Descobri, então, que aquele corredor dava para um armazém. O armazém era pequeno e iluminado pela luz natural, que entrava por pequenas aberturas no alto da parede de cimento. Tal como as paredes, o corredor e a cela, todo o armazém era feito de cimento, excepto a cobertura, sem tecto, apenas o telhado, feito de zinco. O armazém encontrava-se vazio, à excepção de um conjunto de cadeira, que formava um semi-círculo à frente do qual estava uma cadeira solitária. Todas as cadeiras eram iguais, de madeira envernizada e muito simples, sem nenhum tipo de embelezamento. E foi para as cadeiras que me guiaram.
Sentei-me na cadeira solitária, por indicação de um dos meus captores, e estes últimos sentaram-se nas outras cadeiras. Parece que não temiam uma possível fuga da minha parte, e estavam certos. Eu não podia fugir. Tinha de enfrentar as consequências dos meus actos. Ainda faltavam quatro pessoas, pois ainda estavam vagos quatro lugares.
Finalmente, depois de alguns minutos, os quatro chegaram mas apenas três se sentaram. O que não se sentou, colocou-se à frente da audiência, se assim posso chamar ao conjunto dos <> que se encontravam sentados. De súbito tirou o capuz que protegia a sua identidade. Olhou para mim atentamente. Os olhos castanhos, enquadrados na face ligeiramente redonda e pálida, juntavam-se ao nariz adunco, formando um conjunto curioso. Rapidamente, desviou a sua atenção da audiência e começou:
– Como sempre, encontramo-nos aqui reunidos por motivos que pouco nos aliciam, mas é este o nosso dever. Já vimos o que o crime faz a todos os que nos rodeiam. O pecado atrai os nossos iguais, mas não deixaremos que nos atraia. Nós temos o poder de julgar os criminosos por não o sermos. Temos agora de exercer o nosso dever.
Afinal, estava perante um grupo de justiceiros e este homem constituía a minha acusação. Era óbvio que não haveria defesa, só se me deixassem falar em minha própria defesa, mas eu não tinha argumentos. A minha garganta começava a ficar seca com o nervosismo e com a proximidade de um precipício que me engoliria…