sábado, 24 de maio de 2008

Memórias (1)

Decidi publicar um conto que escrevi já há dois anos, mas como é comprido, vai ser publicado em excertos. Este é o primeiro pedaço...



Horas, dias, anos passaram. Mas quando perguntei pelo tempo ido disseram-me que tinha sido pouco. É verdade que só vi as formas de luz, que passava pelas minúsculas janelas atravessadas por barras de ferro, caminharem pelo cubículo três ou quatro vezes, mas a agonia fazia o tempo passar mais devagar. A cela, onde me encontrava fechado, oprimia-me. O seu chão de cimento frio, frio como o meu coração, que batia apenas com a força da culpa e da agonia. As paredes de igual frieza e uma porta de ferro, da mesma cor que as paredes, cinzenta, como a minha vida. Mas acho que devo falar da agonia. O sentimento de agonia era tão forte que nem sempre a razão dessa agonia era clara: umas vezes não me recordava qual era ela, outras sim. E quando me lembrava… As imagens, que nunca me tinham abandonado, mas cuja lógica apenas discernia naquelas alturas em que me lembrava, em que me recordava, apareciam à minha frente, como um puzzle completo, e, aí, percebia a razão da dor que me transtornava.
Estava numa rua de casas velhas e abandonadas em que a estrada de empedrado dominava toda a largura da rua, sem espaço para o passeio. Encontrava-se mal iluminada, pois uma das lâmpadas dos postes de iluminação, ali existentes, estava fundida, mas ninguém se preocupou, nem se preocuparia, em substitui-la, afinal, naquele bairro, não havia quem pagasse os impostos: apenas toxicodependentes e sem-abrigo. Os rostos destes não se distinguiam, apenas os seus vultos mergulhados na escuridão surgiam diante dos meus olhos.
Mas eu pouco via, era a raiva que me cegava, uma raiva enorme que batia no meu coração, ao invés das batidas normais. Era apenas aquela raiva que alimentava o meu espírito e me guiava o corpo. O meu aspecto tresloucado, a camisa, antes branca, agora castanha da sujidade, as calças de ganga gastas e sujas e os ténis no mesmo estado deviam condizer perfeitamente com o aspecto da rua, conspurcada pelas actividades dos mal amados da sociedade, seja com seringas, restos do lixo e cobertores velhos, e pela presença dos mesmos.
A razão para a loucura e para a raiva está patente nos acontecimentos desse dia, que me parece tão longínquo, ainda que tenha decorrido há tão pouco tempo. É engraçado como tento encontrar explicação para tudo, como a vida é uma interminável interrogação. Naquele dia perdi tudo, mas posso ter ganho muito mais. Na vida é preciso entregar para receber. Mas, para mim, e naquele exacto instante, tudo parecia perdido. Perdera o meu emprego, a minha namorada e uma fortuna no jogo. Perdi tudo isto e a estabilidade que tanto queria na minha vida. Na minha cabeça, onde os pensamentos revolviam sem sentido, a culpa parecia pertencer à sociedade. A tal sociedade de consumo e do egocentrismo, a sociedade que não pensava em pessoas como eu, pois eu era apenas uma série de números que constituíam a minha identidade legal, não um complexo ser humano. E com a cabeça quente julguei descobrir a culpa pelos problemas da sociedade.
Virei-me para os sem-abrigo. Se estes trabalhassem, de certeza que a riqueza cresceria e os problemas escasseariam. Mas como não trabalham, o Estado gasta dinheiro desnecessariamente com os sem-abrigo.
Revoltei-me e, vendo-me rodeado destes, decidi, num ataque de loucura, descarregar a fúria contra um sem-abrigo.
Meti a mão no bolso das calças e procurei o canivete. Depois tirei-o do bolso e abri-o, fazendo a lâmina brilhar sob a fraca luz. Procurei com o olhar uma possível vítima da minha cólera. Estava a pouca distância, a poucos passos até, um homem, nos seus quarenta anos, de roupa gasta, barba por fazer, sentado e encostado à parede de uma velha casa caiada de branco, a comer algo escondido num saco plástico, mastigando ruidosamente. Parou de comer quando sentiu o meu olhar sobre ele e levantou o olhar. Os olhos faiscaram de medo ao ver o canivete na minha mão e a minha expressão tresloucada. Ele antevia já o seu destino. Levantou-se bruscamente, mas continuou a olhar para mim, em pânico, sem saber o que fazer, como um animal numa jaula. Apertei ainda mais o canivete contra a palma da minha mão e, antes que o homem reagisse, empurrei-o contra a parede que se encontrava atrás de si e enterrei a lâmina no peito. Ele estremeceu e contorceu-se, abrindo muito os olhos e, por fim, parou de se mexer. Desenterrei lentamente a lâmina, que acabei por deixar cair no chão, e deixei o seu corpo escorregar ao longo da parede, deixando um rasto ensanguentado, acabando por ficar sentado no fundo da parede, no chão frio e empedrado da rua.
A face sem expressão e o silêncio que provinha do coração dele chocaram-me profundamente. E esse choque fez-me voltar à realidade. O silêncio da rua fez-me saber que ninguém tinha dado pelo incidente. Ainda que houvesse alguém murmurando o acontecimento, não teria ouvido, pois o meu coração não parava de bater desenfreadamente. E eu tinha medo. Tinha medo da maneira como o acontecimento ficaria gravado na minha própria pessoa. A memória nunca me deixaria descansar, nunca. E as poucas lágrimas que verti em toda a minha vida verti-as ali, diante do corpo sem vida de um desconhecido, uma vida que eu ceifei num acesso de loucura. Se chorei por ele ou por mim, é algo que eu não sei nem nunca saberei ao certo.