segunda-feira, 1 de novembro de 2010

7 - Às cegas

Não sabia por onde começar a procurar, e por isso procurou sem pensar. Já tinha passado uma semana desde que a primeira parte do diário do misterioso Balthazar tinha sido publicado. E nada tinha encontrado. Nem uma única pista. Não era preciso procurar muito no arquivo do jornal: este tinha iniciado a sua actividade poucos meses antes. Talvez por isso tivesse na sua estrutura editores trapaceiros que queriam apoiar a actividade jornalistica em anti-noticias, em eventos que nem sequer tinham importância para a sociedade em geral. Às voltas na biblioteca, no espaço dos periódicos, reflectia seriamente em como se tinha tornado num jornalista de um jornal de notícias supérfluas, perto da categoria de revista cor-de-rosa. Foi interrompido pela urgência de ser um pouco mais prático: abriu volumes de jornais relativamente recentes, ainda que ao calhas.
Perdeu-se mais um pouco. Perdeu-se ainda mais, vidrado num relógio e no seu ponteiro dos segundos, ágil a percorrer o redondo minuto. Mas um som se sobrepôs à marcha incessante do tempo. Cuidadosos passos, e uma bengala no ar, a sondar os objectos que se atravessavam. Os olhos cegos escondidos atrás de uns óculos escuros. Era uma mulher jovem.
O que ele não sabia é que os sons diziam-lhe que alguém se sentara a vasculhar as inconfidências dos jornalistas, e a intuição, que esse alguém estava perdido. Directa, firme e algo formal, mas com delicadeza, ela abordou-o:
- Precisa de ajuda?
Era funcionária da biblioteca. “E eu a pensar que era preciso ver para trabalhar aqui…”
- Mudo? O quê, é assim tão estranho? Pensavas que eu não podia trabalhar aqui por não ver? – respondeu, desfazendo um pouco a imagem séria de antes.
“Como é que ela sabe?! Será que lê mentes?!”
- Olha, eu não leio mentes … podes parar de pensar idiotices e dizer alguma coisa?
- Desculpe lá… Ei, desde quando é que tens idade para me tratar por tu?
- A partir do momento em que encontro idiotas que não me respondem! Eu não consigo interpretar códigos gestuais, não sei se já deu para ver.
- Nunca ninguém disse que a senhora não tem estofo para trabalhar em atendimento ao público?
Ao ouvir tal, a rapariga endireitou-se ligeiramente, voltando à sua posição inicial. Inspirou e expirou. Voltou a perguntar, com uma seriedade que roçava agora o falso:
- Precisa de ajuda?
Mimetizando-a, ele sentou-se mais direito e respondeu:
- Quem lhe disse que precisava de ajuda?
Um sorriso irrompeu:
- Estás aqui há horas. Mexes e remexes nos papéis, como se não tivesses um objectivo certo. Não sabes o que procurar, ou pelo menos como. Deves ter parado, mas apenas para olhar para o relógio. – fez uma pausa, algo triunfante; mas logo continuou – Não te apetece destruir o relógio? Faz um tique-taque irritante e que não nos larga. Mesmo que te percas nos teus pensamentos, sabes sempre que o tempo não parou para esperar por ti…
- Podes parar de gozar, ou lá o que estás a fazer? Como é que alguém comotu me pode ajudar?
- Sabendo o que procuras. Que fazes afinal aqui? - perguntou, fazendo de conta que não tinha percebido o insulto subentendido.
Derrotado, respondeu:
- Procuro uma noticia relacionada com o “Diário de Balthazar”, uma crónica que o meu jornal
publi…
- Mmmm, sei…
- Já ouviste falar?
- Sim. Mas não me lembro de notícias relacionadas nos últimos tempos… É mesmo verdade? Pensei que era inventado…
- Não, não é…
- Mas reparei no facto do bar estar aberto a noite toda até de madrugada, não é normal. Sabes quando é que isso acontece nesta cidade? No dia 3 de Agosto...
- 3 de Agosto?
- Sim… És de fora? - antes que ele pudesse responder – Sim, já se percebeu… Procura nesse
dia, o dia da"Grande Madrugada". Podia contar a gloriosa história desse feriado recentemente criado (e eliminado), mas basta saberes que foi criado para render mais dinheiro à vida nocturna...
Ele não gostava de ser mandado por alguém mais novo, e ainda assim tão arrogante, mas não tinha melhor ideia… Ela sentou-se a seu lado, como se fosse ajudar a procurar, e ele começou a folhear…
E num título inesperado de dia 3 de Agosto descobriu o que queria:
- “E debaixo do véu”… No dia da Grande Madrugada uma jovem morreu no Pub “A Dama do Véu” em estranhas circunstâncias… Polícia fala de homicídio… Parece que é isto!
- E graças a quem? A quem?
Estava claramente a divertir-se com a situação. Ele respondeu prontamente, algo chateado, mas satisfeito com a descoberta:
- Obrigado pela ajuda.
- De nada. – e com desenvoltura disse - Chamo-me Manuela. E tu?
- Miguel.
Ela estendeu a mão e ele apertou-a. Ela sorriu, um sorriso trapaceiro:
- E agora, já faço parte da investigação?
Ele riu-se, mas não respondeu.
Leu a notícia em voz alta, e os dois discutiram-na. Rapidamente perderam-se noutras conversas, nos seus caminhos sinuosos. Mais uma vez... sem contar com a marcha dos tempos, com o cair da noite, e o fim de mais um dia de vasculhação (não será o melhor nome para algo que não é bem uma investigação?).
Mas ainda muito por contar. E, afinal, que se passou naquela noite de Verão?

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