quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Memórias (3)

 O meu acusador virou-se para mim. Os seus olhos diziam-me que ele sabia o que eu sentia. Depois de uma demorada apreciação a todos esses sentimentos, perguntou-me:

– Como te chamas, jovem?

– Tomás. – respondi eu, atabalhoadamente.

Olhou-me nos olhos e perguntou, calmamente:

– Confessas ter assassinado outro homem, sem motivo aparente e sem ataque por parte desse mesmo homem?

As lágrimas vieram-me aos olhos. Tentei não chorar, mas quando ouvi o meu crime dito em voz alta, o peso na minha consciência aumentou consideravelmente. Durante algum tempo deixei as preciosas gotas caírem, e digo preciosas por as ter vertido tão poucas vezes na minha vida, algo que o meu acusador permitiu, esperando pacientemente, com os seus grandes olhos pousados em mim. Ainda com as lágrimas a correrem nos meus olhos, desviei o olhar do acusador e respondi:

– Sim. Confesso.

A audiência continuou impávida e serena como antes. Apenas o acusador falou, agora com uma expressão triunfal estampada no rosto redondo:

 – Então, está encerrada a sessão. – e mudando depois para um tom de voz mais formal, continuou – A pena para este crime é a pena capital. – virando-se para dois dos <>, ordenou – Vocês dois vão buscar a injecção letal…

Ia acrescentar algo, mas interrompeu-se e dirigiu-se a alguém que estava atrás de mim:

– Quem é você? O que faz aqui? Não aprendeu que não deve entrar sem permissão?

E uma voz atrás de mim soou, uma voz masculina, suave e atraente, num tom de chacota evidente:

– Ora, não iria deixar este jovem sem defesa, pois não? E quem sou eu? Sou o advogado de defesa do Tomás. Pode-me chamar Jonas, como o filósofo e a personagem bíblica.

O acusador olhou-o, desconfiado. Mas depois, um sorriso malicioso rasgou a face e disse:

– Pode prosseguir com a defesa, pois a acusação terminou agora mesmo. Veremos o que consegue, porque, não sei se sabe, está a brincar com o fogo.

Jonas avançou para o meu campo de vista. A pele, de tez escura, contrastava claramente com o fato, de um branco puro. Os olhos e o cabelo eram igualmente escuros, sendo este último muito curto. Tal como a voz, ele era fisicamente atraente. Devia ter trinta e poucos anos, mais dez do que eu. Lentamente, ele começou a discursar:

            – Vou-vos falar de Jonas, a personagem bíblica. Deus deu uma tarefa ao homónimo: avisar os habitantes de Ninive, a capital do Império Assírio, que seriam castigados pelas suas maldades. Mas Jonas queria que os habitantes de Ninive fossem castigados pelo mal que fizeram aos Israelitas, o seu povo e, por isso, fugiu para o mar. Mas, durante uma grande tempestade, Jonas foi lançado à água e foi engolido por um peixe. Dentro do peixe, rezou, e Deus ordenou ao peixe que o cuspisse para terra firme. Depois, Deus formulou a mesma ordem e, desta vez, Jonas aceitou.

            E Deus apenas boas verdades nos ensinou. Ensinou-nos a perdoar e a preocuparmo-nos com os outros, ainda que nos tenham feito mal. Porque é que não perdoamos também este jovem? Ele merece o perdão, ainda que não tenha agido correctamente. Tomás pode aprender novos valores, para os perpetuar, para os fazer durar até às gerações seguintes. Segundo Jonas, o filósofo, as nossas acções devem ter em conta as gerações futuras. 

Parou subitamente de falar, para ver o impacto que criara na audiência. E sorriu levemente, ao reparar que a audiência estava completamente absorta, suspensa nas suas palavras. E, calmamente, como antes, prosseguiu o seu discurso:

– Libertem-no e o futuro estará assegurado. Quem está comigo?

E com estas palavras, todos os <> que se encontravam sentados levantaram-se lentamente, em apoio.

Desta vez, Jonas sorriu abertamente. O meu acusador também apoiava as palavras de Jonas e, para demonstrar esse apoio, avançou até ficar a um braço de distância do meu defensor e disse, sorrindo abertamente, como um reflexo da pessoa a quem se dirigia:

– Acho que é justo. – e ainda com o olhar fixo em Jonas, falou, bem alto, para os seus companheiros – A partir de agora, este homem é livre.

Depois, calmamente, aproximou-se de mim e falou, no mesmo tom com que se dirigiu antes à audiência, agora completamente extasiada com o final deste julgamento:

– Cuidado com as tuas acções futuras, porque continuaremos a vigiar estas ruas com o mesmo zelo de antes.

De seguida, afastou-se e deu, em voz alta, a sessão por encerrada.

Aproximei-me vagarosamente de Jonas, o meu novo protector, e pedi-lhe para falar com ele a sós. Ele aceitou. Encostamo-nos a um canto do pequeno armazém. Queria-lhe perguntar várias coisas que estavam baralhadas na minha mente. Por isso, inquiri-o nervosamente:

– O que faz aqui? Porque me defendeu? Não deseja que eu seja castigado por um crime tão hediondo, tão violento, tão errado?

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