sábado, 23 de fevereiro de 2008

Episódio 1: Um novo dia

O dia chegou finalmente às ruas. Uma aurora tardia de Inverno, velada pelo nevoeiro invulgar de Fevereiro, iluminou a cara daquela figura humana. Ele, encostado a uma parede soturna, observava o ar acima dele, como se conseguisse vislumbrar o céu triste.
Qualquer um diria que este era um vulgar rapaz que tinha ultrapassado há pouco os seus vinte anos. Poderia ser, mas no seu olhar transportava um peso maior que a idade que aparentava.
Os olhos cor de mel brilhavam como uma emoção desmaiada que revolvia à vista de todos. E o céu rugia levemente em resposta a uma pergunta que ele punha na sua mente.
Fechou os olhos e baixou a cabeça, num misto de desespero e serenidade. Era como se a criaturas como ele não fosse permitido sair de um estado de total controlo sobre si próprio e sobre os outros.
A névoa desceu na cidade depressa demais. Era uma névoa avermelhada e bruxuleante. O chão começou a tremer. Ele simplesmente suspirou e desencostou-se, expectante.
O solo vibrava cada vez mais e, a certa altura, fendeu. O buraco que ali surgiu abriu-se rapidamente. De lá, emergiu um ar fétido. Trazia com ele o cheiro de um imenso cadáver em decomposição. Da escuridão materializou-se uma escadaria. Dela subiu um estranho vulto. Era levemente informe, formando uma espécie de névoa negra de forma humana.
Este cenário não o repugnou nem assustou, apenas o deixando um pouco mais curioso, tendo abandonado o seu anterior estado de reflexão.
No último degrau, a névoa como que se uniu. As partículas negras formaram um todo muito semelhante a um humano. Foi como se a matéria se tivesse juntado de novo nos inícios da existência para formar o Homem. Ou, como neste caso, uma mulher.
O cabelo preto contrastava claramente com a cara pálida, onde repousavam olhos negros como a escuridão que envolvia o local donde emergiu a escadaria. Virou-se calmamente para ele, mas nada disse. Em resposta a este olhar, ele disse:
- Então Pérsia, já não se fala?
- Rómulo, Rómulo, Rómulo... Sempre tão simpático... – e com desdém acrescentou - O dia não está para graças. Mandaram-me tratar daquela rapariga. Ela já está a dar problemas a mais...
- Já trataste de problemas piores.
- É verdade. – e com voz de falsete – E tu, que fazes hoje?
- O costume... Passeio pela cidade, convenço alguém de que hoje é dia ideal para se atirar de uma ponte abaixo, etc. – respondeu, com sarcasmo.
- OK.
Dito isto, ela continuou o seu caminho como se nem tivesse parado para falar com ele. E Rómulo não se sentiu afectado por isso.
Ele suspirou. Observou durante um bocado o buraco a tornar-se fenda e a fenda a tornar-se empedrado. O cheiro nauseabundo cessou de repente. A névoa levantou. E com ela, todos os sons de um mundo que acordava surgiram. Sabia que tinha chegado a hora de iniciar o seu dia, a sua ronda pela cidade.

Continua no próximo episódio...

2 comentários:

ninguem disse...

Olha: gostei! Não é preciso dizer que és excelente com essa tua caneta e mente brilhante...

Mas acho que quem ia gostar mais desta história ia ser o Prof de Port (ia logo falar do Caronte, morte e tal).

Agora só penso em ler o resto desta história :P

Continua, ó mente inspirada...

Carla Ribeiro disse...

Aí está uma história promissora. Gostei imenso!